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Colocando na rotina o que é imortal

Sempre gostei muito de arte de rua, mas este sentimento era totalmente instintivo. Além das boas sacações e das cores (que é justamente o tipo de trabalho que me chama MUITO a atenção), uma característica inerente a este tipo de trabalho fez com que eu me apegasse mais ainda à ideia.


Ao contrário da maioria das obras de arte, a arte de rua já nasce morrendo, e não visa a posteridade; sua moldura é a realidade. Sua duração é o acaso.

Como tudo da natureza humana - incluindo os próprios autores - a expressão artística tem ali um processo de concepção, nascimento e morte. Tem uma vida útil, como qualquer ser ou qualquer instrumento útil - como a tal privada de Duchamp.

Assim como no trabalho de Marcel Duchamp,  a obra de arte perde a aura imortal e se torna um objeto funcional, como um pente, uma roda de bicicleta, um quarto empoeirado. E eis sua pergunta: porque o cotidiano não pode ser bonito, apreciado?

Esta é uma divisão de funções que Jackson Pollock explicou em uma entrevista à revista Life. Ao ser perguntado sobre a função de sua arte - puramente estética - ele citou o exemplo de um vaso de violetas. O quanto é diferente sua função do que a de um garfo, por exemplo?

A obra de arte só se classifica como tal quando é posta em um pedestal de reflexão, e esta é a visão de que estes dois duvidavam. Quem escolhe, afinal, o que deve ser posto ou não sobre este pedestal? Todas as percepções valem. Esta é a diferença.

Uma história muito boa do Duchamp é sobre uma das suas obras, que era um grande espelho. Em uma das suas exposições pra lá e pra cá, acabaram quebrando a peça, deixando-a rachada. Esperando uma mega bronca, os funcionários da casa de cultura foram dar a notícia e ficaram surpresos: ele havia adorado a idéia. 

O que o artista gostava, era justamente deste acaso da vida, pois era isso o que proporcionava as idéias científicas, as grandes invenções mecânicas, as obras de arte. O que não é a Monalisa afinal - e aí eu utilizo uma obra que aparentemente NEGA tudo isso devido à sua aura histórica-, senão uma grande obra do acaso, de um cara que ao longo de sua vida, decidiu pintar a esposa de um comerciante, para ganhar uns trocados?
 
O que a arte de rua faz é subverter estes conceitos; da mesma forma com que o objeto funcional prático pode ser colocado em um patamar de reflexão, também pode a obra de arte ser colocada em uma posição prática, e tão efêmera quanto a de uma geladeira. 

Comecei a tirar fotos destes trabalhos nas ruas, e a sensação que tive era de conseguir quebrar um processo inquebrável; fazer uma ruptura no que não pode ser controlado: o tempo. Me senti tirando o caráter essencial da coisa, que a validade. A vida como ela realmente segue - ao contrário do conceito imortal que tanto tentamos aplicar às obras de arte.

Um dos mais irônicos pra mim é uma imagem do Nascimento de Vênus (Botticelli), que fica ali pela Leopoldina-RJ. Uma das imagens mais imortalizadas da história, sendo retratada ali em uma parede suja, de rua. É colocar na marra, o intocável, no mais puro mal hálito da realidade (como comparava Guimarães Rosa). 


Passei diversas vezes pelo trabalho que julgarei pra sempre o meu preferido. Ele ficava ali na Pres.Wilson, perto do consulado Francês. Além das imagens bem coloridas de salmão, sombras brancas e azul, tinha uma aplicação de rodas enferrujadas de bicileta que rodavam e fitas prateadas (devia ser uma espécie de adesivo) fazendo um "chuveirinho" no lado oposto da parede. Bem embaixo, uma pequena privada e uma frase "homenagem à Duchamp", com a data. 

N'outro dia passei por ali e vi que fizeram outro trabalho por cima. Também original, mas não conseguiu conter minha decepção. Apesar de passar por ali diversas vezes por ano - e ver o trabalho se deteriorando-, eu já o tinha meio que como de estimação. Depois, contive meu pensamento quadrado e concluí: a função do trabalho havia sido cumprida. 

E 'cest fini.

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